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Minha quarta onda de feminismo: a liberdade como substância

Publicado por:
Cintia Melo
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Eu posso dizer que eu estou vivendo minha quarta onda do feminismo.

A primeira começou quando eu tinha entre 16 e 18 anos e eu só conseguia enxergar a mulher, eu lutava pela libertação dos corpos femininos. A legalização do aborto era minha pauta principal.

Eu acreditava no poder emancipatório da pílula anticoncepcional e via em cada relação sexual uma potência de liberdade. Eu ainda não entendia sobre as transversalidades de raça e cor e muito menos me questionava sobre o papel da masculinidade no mundo.

Eu ficava horrorizada com a mutilação de clitóris, achando (falsamente) que todo muçulmano era um bárbaro. Nessa época, me encantei pela Marcha das Vadias.

Marcha das Vadias em Boston, EUA, em 7/5/2011. Foto: AP Photo/Josh Reynolds

 

Depois, lá pelos 23 anos, quando o marxismo começou a tomar um espaço cada vez maior na minha vida, que eu comecei a entender as explorações materiais pelas quais as mulheres passavam. Foi quando eu comecei a perceber de fato o que era dupla ou tripla jornada, a me questionar por que as mulheres ganhavam menos que os homens, a tentar entender que a prostituição e a pornografia não eram formas de libertação sexual, mas de exploração econômica.

Foi a primeira vez que eu me dei conta que ser uma uma mulher branca no mundo me colocava numa posição de privilégio sobre as manas negras. A Marcha Mundial das Mulheres começou a fazer todo o sentido, e nos meus espaços políticos comecei a reivindicar posições de liderança para mulheres. Eu achava que votar só em mulher era algo revolucionário.

3ª Marcha Mundial das Mulheres, 2010

 

Um pouco mais velha, lá pelos 26, depois de episódios traumáticos na organização política que eu fazia parte e de uma onda de denúncia de assédios e agressões por parte de homens que a gente conhecia, eu introjetei alguns valores extremamente equivocados.

O primeiro deles foi a ideia de ter medo de homens. De ter raiva de homens. De me culpar pelo meu desejo afetivo e sexual por homens. De questionar todas as minhas amizades qmasculinas. Misandria não era apenas uma piada. Tudo isso fazia algum sentido, afinal, todos os homens, meu irmão, meu pai, meu amigo, meu namorado, meu professor, meu vizinho, enfim, todos eles, foram criados num mundo patriarcal, permeado pela cultura do estupro.

Não foi uma época feliz, nem uma época de descobertas. Foram dias de andar na rua sempre armada pelo que pudesse acontecer.

Agora, quase com 30, eu venho carregando as lições de cada época, de cada homem e mulher que eu encontrei no caminho. E comecei a entender o feminismo como liberdade, solidariedade e radicalidade do amor.

Eu ainda quero mulheres com corpos e úteros livres, eu quero igualdade econômica e o fim do racismo, eu acho que todas deveríamos aprender defesa pessoal. Mas, eu me frustrei com muita coisa da qual eu encontrei pelo caminho. Eu me frustrei por cultivar o medo e a raiva.

Eu hoje ando pela rua em paz. Eu posso ser vítima de violência, posso, a qualquer momento, em qualquer lugar, na rua, no parque, em casa, na igreja, na escola. Mas isso não me limita, isso não me orienta.

Eu não acredito mais no ostracismo, no escracho, na segregação. Eu acredito em amor como forma de superar os conflitos e curar as feridas. Como forma de desconstruir a masculinidade tóxica e o patriarcado.

Eu, hoje, converso livremente com meus amigos, sobre as violências cotidianas que eles praticam. Eu hoje, acredito em dar a mão pra irmã que está abortando ou a que está parindo. Eu respeito a burca e a camiseta sem sutiã. A Marcha das Vadias, a Marcha Mundial das Mulheres, e até a misandria, me ensinaram um pouco. Mas, hoje, eu acredito na liberdade.

E para ser livres, a primeira coisa que precisamos perder é o medo. O medo de nós mesmas e o medo dos outros. Para perder o medo, só a solidariedade. Divida sua comida com um pedinte. Atenda o telefone do seu amigo que terminou às quatro da manhã. Marque aquela mana na vaga de emprego que encaixa no perfil dela. Aceite um lenço de um desconhecido quando você estiver chorando no metrô.

Hoje, eu ainda sei, por cada opressão que eu passo por ser mulher um homem se deleita em privilégios. Mas, eu sei, que não é individualmente culpa da maioria dos homens que eu convivo. Hoje eu tenho a tranquilidade de chamá-los de amigos, de mandarem eles lerem sobre feminismo, de puxar a orelha e de amá-los.

Hoje, também, eu sei que cada história de vida de uma mulher é uma história de superação e que só quando a gente aprender de fato a se reconhecer umas nas outras nós poderemos destruir o patriarcado. Hoje eu tento substituir o medo por amor. A raiva por solidariedade.

Se isso te faz me achar menos feminista, tudo bem, continuaremos caminhando juntas!

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*O lugar da fala acolhe a expressão de cada uma. As autoras do blog não interferem nas escolhas das colaboradoras quanto ao uso da linguagem, ao estilo de escrita, à gramática e à sintaxe. A revisão feita é meramente técnica, para correção de eventuais erros de digitação, todo o resto será tratado como opção de estilo da autora.

Sobre a autora

Formada em Direito pela UFMG, especialista em Gênero e Sexualidade pela UERJ e mestre em planejamento urbano também pela UFMG. É feminista e ativista por direito à moradia adequada há mais de dez anos. Adora séries, filmes, gatos e cerveja.

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