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Não me desrespeite por amor

Publicado por:
Cintia Melo
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Não, eu não estou falando de relacionamento de casal abusivos. Eu estou falando de todas as microagressões que toda identidade dissidente sofre o tempo todo travestida de cuidado e amor.

Se você é gorda, provavelmente já ouviu algo como:

– Você ficaria mais linda se emagrecesse.

– Fulana fez vigilantes do peso e nunca mais engordou.

Se você tem algum transtorno mental:

– Você tomou o seu remédio hoje?

– Exercícios físicos/Deus/meditação são ótimos no combate à depressão.

Se você é lésbica:

– Claro que eu respeito sua sexualidade, mas é melhor sua família não ficar sabendo, porque aquele seu tio que faz piada do pavê todo Natal pode não aceitar.

– Você não devia postar foto da sua namorada no Facebook, é muita exposição.

Se você é de um movimento/partido de esquerda:

– É melhor você não ir no protesto, porque você pode ser presa.

Então, vamos lá.

Se eu sou gorda, provavelmente eu já tentei, ou pelo menos já ouvi falar de tudo quanto é dieta disponível no catálogo. Provavelmente um ou todos os meus médicos já me mandaram perder peso, mesmo que minha queixa fosse uma unha encravada. Provavelmente eu nunca me enxerguei no corpo de nenhuma atriz ou modelo.

Se eu tenho um transtorno mental diagnosticado, eu já sei o que os medicamentos fazem e não podem fazer por mim. Provavelmente, eu também sei o impacto de outras medidas e todas suas limitações. Provavelmente, se tivesse uma fórmula mágica pra não sofrer e não ser discriminada, eu faria.

Se eu sou lésbica, eu sei as dificuldades que eu enfrentei pra aceitar minha forma de amar e o quanto custa meu silenciamento.

Se eu sou anarquista, ou comunista, eu estou bem ciente de que os 23 do Rio de Janeiro só foram condenados porque são anarquistas, eu sei o quanto arde um spray de pimenta, eu sei o terror que a polícia toca, e eu sei que o Facebook rouba meus dados.

Provavelmente, eu sei disso até mais do que você. Mas, quando você não reconhece que eu sou capaz de fazer minhas escolhas dissidentes livremente e consciente das suas implicações, você está me desrespeitando. Você está subestimando minha capacidade de ler o mundo a partir da minha vivência.

Não é amor se você me ama, mas tem um mas. Não é amor se você me “respeita” mas não me aceita.

Pode ser que eu ame meu corpo, mesmo sabendo que ele não está representado nas capas de revista. Pode ser que eu me enxergue como um ser humano potente e maravilhoso com as minhas instabilidades. Pode ser que eu ache minha namorada linda, e adoro ter nossas fotos juntas na MINHA rede social, ainda que isso implique um olhar torto na festa de Natal. Pode ser que eu ache insuportável viver num mundo injusto e a ameaça de uma sanção legal me amedronte menos do que o fato de viver de joelhos.

Talvez eu e você não compartilhemos os mesmos ideais de beleza, saúde, privacidade, bem-viver e amor. Continua não sendo legal você medir meu estar no mundo a partir de sua regra. Não é legal mesmo que você ache que está fazendo isso por amor.

Toda identidade dissidente é uma identidade resistente. E se tem uma coisa que a gente aprende bem na resistência é calcular qual o backlash que cada escolha tem.

Não é amor se você me ama, mas gostaria que eu fosse diferente. Bom, pode até ser amor pela sua ótica, a nossa sociedade construiu concepções muito estranhas de amor, mas não é respeito.

Você não precisa ficar do meu lado se alguma coisa der errado. É uma escolha sua estar aqui ou não, mas se você escolhe estar do meu lado, não queira me conformar a uma sociedade que me tem desprezo e horror. Meu corpo, minha vida, minha mente, minha existência é meu campo de batalha. É um direito meu viver a vida que eu escolhi. Haja as consequências que houver.

A minha identidade pode ser confusa para você, provavelmente a sua é confusa para mim, mas não tente adequá-la aos padrões normativos vigentes, porque isso não é amor, isso é normatização e colonização das identidades e dos afetos. Eu não vou me conformar. Existir, para nós, é um ato de desobediência.

Eu vou continuar passando com meus quilos extras, com os ataques de pânico, com a mulher que eu amo e com minha estrela preta e vermelha. Nada disso me define, também não deve me limitar.

Talvez não sejam estas as razões pelas quais você me ama. Talvez você me ama pelo fato de que eu adoro abraço, ou porque a gente compartilha os gostos pelos mesmos diretores de cinema, ou porque você me conhece desde bebê.

Não importa, o amor é uma coisa confusa. Mas não tem como você amar só esse pedaço, e querer neutralizar o resto com o seu cuidado. Gente é tipo um combo, tipo compra casada.

Para ter minha companhia no almoço no San Ro, vai ter que ficar preocupada quando ver na TV que a Câmara dos Vereadores está ocupada. E está tudo bem! Eu também me preocupo com você quando você faz algo fora da minha caixinha.

Só te peço que seu amor não me silencie. Se você não entender as minhas razões, converse comigo. Se você estiver com medo ou preocupado, vem fazer um tour no meu infinito particular. Vem, pode vir.

Sobre a autora

Formada em Direito pela UFMG, especialista em Gênero e Sexualidade pela UERJ e mestre em planejamento urbano também pela UFMG. É feminista e ativista por direito à moradia adequada há mais de dez anos. Adora séries, filmes, gatos e cerveja.

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