O autor sou eu mesma
Existem várias ideias que permeiam o que eu vou falar aqui.
A primeira é que o machismo pode também estar nos detalhes (e geralmente está), a gente bem sabe.
A segunda é que o machismo não é necessariamente uma intenção, é uma estrutura, uma forma de ver e ordenar as coisas. Como somos criados dessa forma, o machismo pode ser inclusive a forma que nos parece mais automática, imediata e lógica de ordenar as coisas. É por isso que o machismo é estrutural, é por isso que romper essa estrutura é uma desconstrução, é por isso que temos que ficar atentos.
A terceira é que essas feministas veem machismo em tudo, pois é, e isso acontece porque possivelmente ele está em muitas coisas mesmo.
Mas apontar machismo nem sempre é um ataque, inspirem, expirem, e vamos falar de coisas que passam despercebidas.
Eu escrevo, eu escrevo já tem muito tempo, mas é bem recente na minha vida tornar meus textos públicos. Colocar meus textos pra jogo me fizeram perceber, com o tempo, algumas coisas:
- Eu realmente gosto de escrever, sinto prazer na verbalização e na maioria das vezes tenho orgulho do resultado do que escrevo.
- Eu escrevo bem e eu tenho um estilo próprio de escrita, que é meu, que eu desenvolvi, que é a minha forma de comunicar. Tem gente reconhecendo isso e é importante que eu reconheça também.
- É importante pra mim que um texto que eu escrevi seja identificado como meu.
Considerando essas três coisas eu comecei a me manifestar em situações que antes eu só deixava pra lá, como ver um texto meu ser divulgado sem indicar a autoria. Me incomoda, e agora eu falo.
Foi numa situação dessas que comecei a prestar atenção numa coisa que seria apenas curiosa se não fosse tão comum.
Escrevi um texto no Facebook e rolando a tela da rede social vi o mesmo texto, copiado e colado, por outra pessoa. Comentei imediatamente:
Isso passou, ficou pra lá. Eis que fui buscar no meu Facebook um outro texto sobre outra coisa, que um amigo queria ver. Nisso parei pra ler comentários desse e de outros textos no “caminho”.
Um comentário dizia “ok, o texto apresenta uma série de críticas, mas e a solução?”, ao que uma outra pessoa respondeu “o autor deixou claro no texto que não sabe a solução”.
Comentários que me pediam pra indicar a fonte de onde tirei o texto. Comentários outros que debatem o texto “do autor”. A coisa é comum, eu que nunca tinha reparado.
Lembrei inclusive que quando escrevi a história da minha bisavó recebi mensagens que antes de parabenizar perguntavam “o texto é seu mesmo?”, “sim”, “nossa, parabéns, deveria escrever um livro”.
Parece bobagem, eu sei, mas percebi que pra muita gente parece mais plausível a ideia de que eu tenha copiado o texto – de um homem – e colocado ele ali, sem indicar a fonte, do que entender que fui eu mesma que escrevi aquilo.
A ideia automática, o pensamento que parece lógico, é de que um homem escreveu aquilo.
Fui pesquisar mais sobre isso e, obviamente, não vem do nada. Existem estudos que mostram que homens tendem a não ler autoras mulheres, é histórico o fato de que autoras brilhantes escreviam sob pseudônimos masculinos ou neutros.
George Elliot, um dos nomes mais conhecidos da literatura inglesa, é Mary Ann Evans. Joanne Rowlling foi convencida a assinar a série Harry Potter como J.K., pois meninos não leriam uma obra escrita por uma mulher. Emily Brontë assinava suas obras como Ellis Bell.
Porque a razão de as autoras se esconderem em nomes masculinos é, por vezes, uma questão comercial (autoria masculina – ou que não seja imediatamente identificada como feminina – vende mais) e em outras tantas uma questão de liberdade – quando se vê uma autora mulher há uma postura que se espera dela, ainda há a ideia de que mulheres apenas escrevem romances leves, voltados exclusivamente para outras mulheres.
E como tudo que amarra o conceito tradicional de o que é o feminino, essa expectativa é aquilo que faz com que mulheres sejam menos aceitas na literatura e, ao mesmo tempo, é algo que elas não podem contrariar. Basicamente a ideia de que precisam saber seu lugar. Devem escrever de forma doce, delicada, voltada à um público especifico, e se contrariarem isso serão lembradas do quão desnecessariamente agressivas elas soam, do quão masculina parece a escrita, do quão indelicadas são suas ideias.
Svetlana Aleksiévitch, Nobel de literatura, disse em entrevista recente que “quando começou a escrever sobre guerras, escutou que estava no lugar errado, já que em seu país espera-se que as mulheres façam poesias “sobre flor, amor”. “Por ser mulher eu não poderia abordar esse tipo de tema pesado e sofrido, já que esta seria uma literatura masculina.”
Isso cria um cenário no qual todos nós crescemos: um mundo literário predominantemente masculino, naturalizamos, assim, a ideia de que existem mais autores homens – estes que escrevem em diversas linguagens sobre todos os temas – e algumas poucas autoras mulheres, que escrevem para outras mulheres, numa linguagem de mulher.
Isso faz com que a voz que ouvimos nas narrativas que lemos seja sempre masculina.
Quando nos deparamos com um texto que não é escrito para mulheres – seja sobre política, questões sociais, críticas, textos técnicos – que não se apresenta com uma linguagem tipicamente associada ao feminino, a tendência natural, automática, é que a voz que esse texto ganha dentro de nós seja masculina.
Essa lógica nos coloca em armadilhas o tempo todo. E aí nos referimos ao autor de um texto quando queremos debater uma ideia dele, mesmo que estejamos diante da autora, mesmo que estejamos escrevendo pra ela. É aí que quando lemos uma referência que mencione apenas o sobrenome de um autor especialista acreditamos quase que imediatamente que é um homem.
O que fazer contra isso é difícil de saber, creio que um movimento de tentar citar nomes completos de autoras mulheres sempre que forem referenciadas seria interessante, uma forma de tirá-las dessa invisibilidade literária. Buscar mulheres para ler, descobrir as diferentes linguagens dentro da literatura feita por mulheres também ajuda.
O mais imediato é ficar atento, não aceitar sempre o cenário inicial e automático que nossa cabeça nos apresenta.
Muitas vezes pode ser uma realidade moldada pelo machismo dos pequenos detalhes, esses que formam todos nós.
Feminista por necessidade, desde criança encontrou na verbalização uma arma de resistência, escreve porque acredita nas palavras como fonte inesgotável de magia, na importância do debate e na força da pluralidade de vozes.