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O casamento infantil no Brasil existe sim

Publicado por:
Vitória Brito Santos
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Está na hora de parar de achar engraçado quando alguém diz “que pegou uma novinha pra criar”.

Quando comecei a pesquisar a temática da minha Dissertação de Mestrado (2016), ao mesmo tempo em que me chocava com cada dado novo encontrado, eu ficava cada vez mais intrigada em compreender como era possível que, ao longo dos meus 25 anos, nunca tivesse lido nada sobre o assunto no que se refere ao Brasil. Sabia que existia, mas nunca tinha visto nada concreto. Me questionava: como somos o 4º país no mundo em número absoluto de Casamento Infantil? Eu nunca tinha assistido uma reportagem na televisão, lido isso na manchete de algum jornal, sequer comentado isso com alguém.

 

Comecei então a perceber que muitas outras coisas estavam por trás desse não saber… Lembrei que enquanto trabalhei em escola comentávamos que: “fulana” tinha ido morar com um homem mais velho, “ciclana” a mãe tinha deixado vivendo com um tio que iria criar e ajudar a família. E aí percebi aquilo que sempre esteve diante dos meus olhos e está do de todo mundo. Milhares de meninas “foram morar com um cara”, e sim, nós sabemos disso. E não, isso não é um Casamento nos moldes religiosos ou jurídicos, mas são SIM casamentos.

 

Eu comecei a estudar o tema em uma aula do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale. Precisava fazer o artigo final da Disciplina de Diversidade Cultural e Direitos Humanos, e resolvi falar sobre Direitos Humanos e Infância. Quando estava pesquisando, para começar a escrever sobre a circuncisão feminina, me deparei com a temática do Casamento Infantil. Li uma notícia que trazia resultados do Livro elaborado pelo Instituto Promundo, lançado em 2015. Os números me deixaram em choque. Eu sabia que isso ocorria no país, como acontece em todos os lugares do mundo, porém não tinha noção da proporção que tinha.

 

Escrever a Dissertação sobre um tema ao qual eu não tinha bibliografia foi um processo complexo e desafiador, tive que criar formas de compreender o que de fato ocorria no país. Falar de Direitos Humanos sempre vai ser importante, principalmente porque no Brasil muitas pessoas não compreendem o que são os Direitos Humanos, elas ainda estão “agarradas” à ideia de que Direitos Humanos servem para proteger bandido. Costumo brincar que se alguém encontrar essa parte na legislação – me refiro a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) –, eu paro de falar desse assunto.

 

Falar de Casamento de Crianças é falar de Direitos Humanos. Estima-se que, até 2020, mais de um bilhão de meninas terão se casado com menos de 18 anos no mundo todo.

 

E no Brasil nós não falamos sobre isso, seja na mídia ou na academia. Os dados dizem que 38% das mulheres brasileiras casaram ainda menores de idade (com menos de 18 anos, idade do final da infância segundo a Declaração Universal dos Direitos da Infância, ratificados pelo Brasil em 1989).

 

Destes casamentos, 78 mil são de crianças com menos de 14 anos, o que nos mostra outro problema gravíssimo. No Brasil, desde 2009, qualquer ato sexual praticado com um menor de 14 anos é estupro de vulnerável. Essa é uma mudança proveniente do Código Penal, ou seja, são estupros legitimados – legitimados aos olhares da sociedade. Quando achamos que está tudo bem “pegar uma novinha para criar”.

 

Nós precisamos conversar e falar sobre isso. Minha Dissertação de Mestrado, defendida agora no final de 2017, é o primeiro material acadêmico sobre o tema. Ou seja, precisamos muito estudar sobre o assunto.

 

Os números tendem a crescer, pois há um fator que aumenta essa pratica que é a pobreza no Brasil. Então, quanto mais desigualdade temos, mais os números aumentam.  

 

Os casamentos infantis ocorrem, em sua maioria, com meninas e têm uma ligação direta com a forma como o país foi estruturado e a ideia do local social da mulher ser em casa. As meninas foram feitas para casar e cuidar do lar. Então, aos olhos da sociedade, se ela está sendo “cuidada” e não está passando fome, está tudo bem. Temos, no caso dos casamentos, um processo de intersecção entre gênero e classe social, porque são meninas pobres que estão casando com maridos de, em média, 9 anos mais velhos que elas.

 

Todos esses fatores fazem parte da forma como o machismo está arraigado na cultura social brasileira. O homem que quer estar com uma menininha para se sentir mais jovem, a cultura da novinha, a sexualização da infância e a adultização de crianças pelos pais e pela mídia.

 

Todas essas são formas de violência contra a infância, em especial contra meninas. O casamento na infância é, por si só, uma violência contra a mulher. Não há escolha para essas crianças, porque normalmente são duas opções: ou casa, ou morre de fome, ou casa ou apanha em casa, ou casa ou assume o filho sozinha. E teríamos muitos outros “ou”. Normalmente são relações abusivas, onde o marido é o controlador.

 

Terminada a escrita da Dissertação, muitas outras indagações surgiram e tentarei estudá-las no doutorado, mas foi possível perceber que temos muitos problemas em se colocar no lugar do Outro, então tudo é justificado com a frase “ela escolheu”, como se isso fosse realmente a verdade.

 

Fazemos de tudo para não enxergar o que está ao nosso redor. Temos muita dificuldade em assumir que somos um país racista, machista, homofóbico, xenofóbico e tantas outras coisas. Que não temos o tal interesse pró-vida, já que a maioria dos casos de estupros no Brasil é contra crianças. A forma como a sociedade brasileira foi estruturada, alicerçada pela pobreza no país, o número de desigualdades, a violência contra a mulher que é sistemática, são alguns dos fatores que levam ao Casamento Infantil. Falta muito empatia, falta olhar para essas crianças. Um não-olhar que infelizmente se concretiza na mídia, quando ela não fala sobre essas temáticas. Gostaria de encerrar o texto com um trecho da minha Dissertação: “Não acredito na meritocracia, não acho que saímos do mesmo ponto de partida, nem que as oportunidades são iguais para todos. Deste modo, nós que podemos através da educação, da comunicação ou da área que escolhemos, deixar o mundo um “grão de arroz” com mais equidade, devemos fazer”.

 

O texto completo da minha Dissertação intitulada “Ela se juntou com um cara! Um estudo sobre o Casamento de Crianças no Brasil, Comunicação e Direitos Humanos”, está disponível no site da biblioteca da Universidade Feevale, no link: https://biblioteca.feevale.br/Vinculo2/00000f/00000f79.pdf

Sobre a autora

26 anos, apaixonada por livros, é doutoranda do PPG em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale (RS), estuda a área de Direitos Humanos e Infância, pesquisa sobre o Casamento de Crianças no Brasil, a pobreza infantil e a mídia.

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