O coração bate no peito das pessoas que gestam
Peço desculpas porque a publicação deste texto já vem com um pequeno delay. Há poucos dias, o Alabama aprovou a lei anti-aborto mais rígida nos EUA. A verdade é que esta semana o Brasil fervilhou em suas próprias lutas e eu não tive condições de me debruçar ainda sobre este assunto.
Provavelmente você que me lê é sulamericano, e para nós, abortar legalmente é uma luta que não parece estar nem perto de chegar ao fim. Talvez a negação histórica de nossos direitos reprodutivos tenha sido um dos motivos que a Lei do Alabama tenha nos causado um horror menor do que deveria. Mas, para as estaduninenses, e para nós, sudacas, como para as pessoas que gestam ou possam gestar mundo afora, a Lei é um marco real e simbólico no retrocesso à autonomia corporal de pessoas com útero.
Ano passado, o movimento feminista na América do Sul encheu os olhos e o coração de cada um de nós de esperança. Cada foto da onda verde me deixava aliviada. Me dava a esperança de que os congressistas ou juízes da Suprema Corte, seja no Brasil, no Chile ou na Argentina fossem esmagados pela mulherada com seus pañuelos verdes. Ainda não vencemos, para nós o aborto ainda é clandestino. Mas avançamos muito, em termos de organização, de criação de redes internacionais de solidariedade, de difusão sobre o aborto seguro, mesmo que clandestino, nós avançamos muito em vermos umas nas outras a força que temos e o recado foi dado: se cuida, seu machista, a América Latina vai ser toda feminista. A onda verde ainda está dentro de nós e pode irromper a cada momento. Chegou a nossa vez de levar a onda verde pros Estados Unidos.
Mas, mais que isso, o que choca na Lei do Alabama é que ela é a primeira peça do dominó dos direitos reprodutivos na Terra do Tio Sam, e que sua entrada em vigor irá afetar um número gritante de outros Estados norte-americanos (só este ano 16 Estado já tem projetos de lei anti-aborto sendo discutidos), como a Geórgia, que já está em tudo quanto é mídia. A Lei do Alabama é inclusive muito mais severa que as nossas leis da América do Sul. No Alabama, até os abortos resultantes de estupro serão penalizados. No Brasil o estupro ainda é uma exclusão de ilicitude (junto com outras, como por exemplo, colocar a vida da gestante em risco). Não obstante deixar desprotegida as vítimas de estupro, nota-se ainda a previsão de pena totalmente desproporcional à conduta cometida, a pena para quem abortar no Alabama pode chegar a até 100 anos de prisão, enquanto no Brasil, para a gestante que aborta, a pena máxima é de 3 anos.
Outra caso assustador com essa onda anti-aborto nos EUA é o fato de que antes do caso Roe v Wade praticamente não se buscava a penalização da pessoa gestante, o médico era o principal alvo dos mecanismos de lei e ordem. Não que isso fosse bom, afinal, o que menos queremos são pessoas com úteros se sujeitando a procedimentos médicos sem acompanhamento de um profissional de saúde, logo a perseguição aos profissionais qualificados, faz com que nos reste poucas opções realmente seguras. De todo modo, a Lei do Alabama declara de vez uma guerra às mulheres e a todos aqueles que possam biologicamente engravidar.
Sendo um pouco egoísta, eu bem sei como sistema de dominação imperialista funciona, inclusive nas suas sutilezas, um endurecimento nas leis anti-aborto nos EUA reflete imediatamente na tentativa de endurecer por aqui, no sul global, também.
No Congresso brasileiro também já tramitam projetos de lei buscando restringir os casos de aborto legalizado, como por exemplo, quando resultante de estupro. Eu estou aqui hoje, me posicionando contra a lei do heartbeating porque sei que minha solidariedade é internacional e não se restringe aos úteros brasileiros, mas também, tenho que confessar, eu tenho medo por mim. Eu tenho medo pelos abortos que possa querer ou precisar fazer.
Eu não preciso nem repetir aqui todas as informações que vocês já sabem, né? O aborto nunca será coibido, ele só será punido. O aborto não deixará de acontecer. Ele deixa de acontecer de forma segura. Não é de hoje que cabide, chá de canela, ervas abortivas, cair da escada, tomara porrada na barriga, ou pílulas conseguidas no mercado clandestino estão aí, basta procurar só um pouquinho.
Eu falo de um lugar em que hoje, eu, mulher cis, branca, de classe média, quase não tenho risco de ser presa e menos ainda de morrer caso eu queira abortar. O aborto clandestino para mim continua traumático por ser clandestino (abortar não é traumático, pelo ato em si, aborto é um procedimento médico como outro qualquer). No entanto, para a companheira negra e pobre um aborto clandestino pode significar cadeia ou sentença de morte.
Pílulas abortivas e clínicas clandestinas seguras de aborto custam muitíssimo caro. Muito além do que a média da população brasileira pode arcar, por exemplo. Imagino que nos EUA não deve ser diferente.
Quando eu luto pela legalização do aborto eu luto menos por mim do que por todas as minhas companheiras que talvez só tenham o cabide como solução.
Tá, eu sei o que você vai falar agora. Você vai me dizer que onde o aborto foi legalizado a maior taxa de aborto é entre mulheres negras, e você vai ter a audácia de me dizer que isso é eugenista. Eu vou querer te dar um soco na fuça, mas vou me segurar porque a lei me proíbe de fazer isso.
Nem eu e nem você somos burros. A gente sabe como a estrutura da supremacia branca funciona. A gente sabe que a solidão da mulher negra é real e estrutural. A gente sabe que a mulher negra é o grupo populacional com menor renda em qualquer país. A gente sabe que os genitores dos rebentos somem quando o teste dá positivo, e isso acontece em maior frequência em comunidades de maior risco e vulnerabilidade social, ou seja em comunidades pobres, como as favelas.
Sabendo de tudo isso, afirmo que faz muito sentido que mulheres negras recorram mais ao aborto. E faz muito sentido pensar que em grande parte dos casos, o aborto não é exatamente uma escolha tão livre e incondicionada, como pode ser para outros grupos populacionais, já que a outra opção para elas é a miséria — tanto para mamãe quanto para o bebê. Ok, ok, ok. Estamos na mesma página. Pelo menos até aqui.
Mas, deixa eu te contar uma coisa, eu, e grande parte de quem estamos lutando pela legalização do aborto também estamos lutando pela responsabilidade parental, ou seja, papais, não basta pagar uma merreca de pensão alimentar e ver o filho uma vez por mês, tem que trocar fralda, preparar o almoço, levar na escola, saber o nome dos coleguinhas, brincar e pôr para dormir.
O nosso feminismo também pauta a divisão igualitária de trabalho doméstico, também pauta salários iguais para homens e mulheres. Também pauta licença-maternidade, e proibição de demissão após o fim da licença-maternidade. Pauta pela ampliação da licença-paternidade, para que as tarefas sejam melhor compartilhada, e também para que a gravidez não seja um fator que tire a competitividade da mulher no mercado de trabalho.
Em resumo, a gente também pauta o fim do capitalismo e consequentemente o fim da pobreza. Enquanto isso não chega, e uma gestação pode ser um suplício para essa mulher, eu quero que ela possa abortar sim, e possa abortar gratuitamente, com apoio, segurança, conforto, sem tabu, e sem medo da cadeia.
Sabe de uma coisa, ainda sobre aquele argumento sobre as altas taxas de aborto entre mulheres negras? Nos países e Estados em que o aborto não é legalizado as mulheres negras também são as que mais morrem ou vão presas em função de abortos clandestinos mal-sucedidos ou descobertos pela polícia. Deixar para estas mulheres a opção da morte ou da cadeia, porque o sistema é desigual, me parece mais racista e mais cruel do que me deparar com a taxa de que elas abortam mais. Se elas, hoje, abortam mais porque não abortar lhes parecem ficar mais vulneráveis ainda neste sistema cruel, eu não vou negar isso a elas, mas vou lutar junto com elas, todos os dias, para que o sistema ofereça de verdade opções variadas caso elas queiram ter estes filhos.
Eu não quero mães negras abortando como último (ou até mesmo como único) recurso, mas como escolha, escolha real. Mas enquanto isso não vem, eu quero mulheres negras VIVAS E FORA DAS CADEIAS.
Agora vamos vamos falar rapidinho sobre aborto e pessoas trans. Eu não tenho tantos números de análise como tenho sobre mulheres negras, mas pela minha vivência com meus amigos, homens trans também abortam muito. E eu sei as razões deles. Não é fácil entrar numa ginecologista e obstetra e ser respeitado como homem. Muitos cartórios não vão registrar quem pare como pai. A disforia corporal é ainda mais evidente, e fonte de muito sofrimento quando você é um homem de barba e uma barriga de grávida, e seios cheios de leite. A sociedade cisnormativa não tolera a ideia de homens trans grávidos. O aborto para eles tampouco é uma opção tão livre assim. Talvez, numa sociedade menos hipócrita, numa medicina menos cis-patriarcal aquele homem gostaria sim de gestar e parir seu filho.
Para estes dois casos, o que eu quero muito é o fim da pobreza, é o fim do patriarcado, é o fim da supremacia branca. E aí então, o aborto para essas pessoas possa ser uma escolha mais ou menos racional como foi para mim quando eu abortei. Mas, mesmo sem condições ideais, mesmo que com uma escolha condicionada, se o aborto for a solução que eles encontrarem, esse aborto tem que ser legal, seguro, gratuito e sem culpa.
Aliás, não basta só isso. O aborto tem que ser fabuloso.
Eu tive um aborto fabuloso. Meus amigos e amigas me apoiaram na escolha. O genitor esteve presente. Conseguimos as pílulas sem embaraço algum. Saímos pra jantar, assistimos Netflix, caminhamos na praia na manhã seguinte. Em termos objetivos talvez nós pudéssemos ter tido aquele filho. Eu já tinha terminado meu Mestrado, eu e ele estávamos trabalhando, nossa relação era feliz e tranquila. Ambos tínhamos onde morar. A vida era boa. Mas nós não queríamos aquele filho. Não naquele momento. Fizemos sim um aborto clandestino, mas um aborto clandestino fabuloso, como toda pessoas grávidas merecem.
Eu quero de fato uma sociedade que o aborto não seja necessidade. Uma sociedade em que amigos, família, governo ofereçam todas as condições necessárias para que os futuros pais e o ser humano que chega tenham vida boa, tranquila e confortável. Que a miséria, o racismo e a transfobia não assustem as pessoas de se verem como pais e mães. Eu quero um mundo em que quando eu descobrir uma gravidez eu posso consultar médico, psicólogo e assistente social para saber minhas opções, e que o aborto seja uma delas, dentre tantas. E que no caso de escolher manter a gravidez que me seja oferecida também todas as condições de ser pai ou mãe com conforto e segurança, com a garantia de direitos sociais para mim e para a cria.
Mas, mesmo nesse mundo ideal, nesse mundo sem capitalismo, racismo ou patriarcado, pessoas com útero irão continuar abortando. Não são apenas as condições materiais que levam uma pessoa a optar por não ser pai ou mãe. Pode ser a viagem que você planejou pro Machu Picchu no fim do ano. Ou porque você quer terminar o doutorado primeiro. Ou porque seu relacionamento não vai tão bem como você gostaria e um filho naquele momento ia atrapalhar sua dinâmica de casal. Ou por motivo nenhum. Ou por motivo que não é da minha conta.
O aborto é só um procedimento médico retirando do seu corpo algo que ainda não tem vida. Zigotos e fetos não são vidas. São apenas vida em potencial. Em potencial. Se algo é em potencial é porque não o é. Você não sente culpa ao retirar uma pinta do seu ombro, então não há porque sentir culpa em retirar um amontoado de células, que por um acaso podem vir – caso permaneçam grudada ao seu corpo nas condições ideias – se tornar vida.
Eu quero um aborto legal, seguro, gratuito e sem culpa para todo mundo. Mas, eu quero mais. Eu quero abortos fabulosos. Eu quero clínicas de aborto limpas, agradáveis, com funcionários gentis e direito a acompanhante. Eu quero comprar pílulas abortivas com facilidade, e com uma bula fácil de entender. Eu quero que o aborto seja a coisa mais normal desse mundo. Eu não quero precisar de ondas verdes na América do Sul, ou de massivos protestos na Polônia. Também não quero ver o medo nos olhos dos meus amigos americanos enquanto os conservadores no poder podem, com uma canetada, lhes negarem seus direitos reprodutivos.
Não, eu não posso dizer hoje que sou exatamente pro-choice, porque o privilégio da escolha, num mundo desigual é pra poucos. Mas, eu sou sim pró-aborto, porque o aborto é algo que todo mundo pode um dia querer ou precisar. Eu sou radicalmente a favor da vida de quem tem útero. E isso não significa que eu sou a favor apenas da sobrevivência dessas pessoas. Eu sou radicalmente a favor da vida das pessoas de forma plena, com todos os direitos para que exerçam sua autonomia corporal. Eu sou a tão a favor da vida de pessoas vivas que eu sou a favor de que elas possam gerar nova vida só, quando e se elas quiserem.
E ao dizer que eu sou pró-aborto eu não estou dizendo para você sair engravidando a qualquer momento, porque, enfim, todo procedimento médico é chatinho, o aborto também é, por mais desprovido de culpa judaico-cristã que você seja.
O aborto não precisa ser dolorido, não precisa ser traumático e não precisa ser fonte de culpa. Mas até, sei lá, tomar um tylenol para dor nas costas não é exatamente a coisa mais legal do mundo.
Além do que por favor, usem camisinha. Não importa o que aconteça, usem camisinha. Eu só te dou dois conselhos, beba água e use camisinha.
Mas, o que eu estou te dizendo é que se você engravidar eu não vou defender o seu aborto simplesmente porque você pode escolher (até porque às vezes vai ser mais necessidade que escolha). Eu estou te dizendo que eu sou a favor do seu aborto, isso mesmo não é que eu defenda simplesmente seu direito de escolha, eu defendo seu aborto, semanticamente tem uma diferença gritante do que eu estou dizendo. Eu estou afirmando meu compromisso, mesmo que distante, de que eu vou ficar do seu lado, de que eu vou me preocupar com seu seu bem-estar físico e emocional em razão do procedimento, vou te dar dicas pra diminuir a cólica e o que for necessário.
E, se for o contrário, se você quiser levar a gestação adiante, eu também vou estar do seu lado, mesmo que não seja exatamente carregando o seu bebê, porque de repente, sei lá, você que me lê aqui nunca tenha me visto ao vivo.
Mas eu vou brigar para que nunca se extinga o SUS. Para que o parto humanizado seja a regra. Eu vou lutar radicalmente pelo fim da violência obstetrícia. Para que ninguém constranja quem estiver amamentando em público. Eu vou lutar por escola integral, merenda escolar nutritiva e gratuita para todos. Para que você tenha direito a uma doula e acompanhante na hora de parir. Que você continue tendo licença-maternidade e que se amplie a licença-paternidade. Que a Educação de Base pública seja tão boa ou melhor que a particular. Que você possa assistir à final de Avengers sem marmanjo de 30 anos reclamando de algum barulho que seu filho possa ter feito.
Isso porque eu sou pró-aborto, mas eu sou também pró-vida. A favor da SUA VIDA (sim, eu estou da sua vida de pessoa com útero, que já nasceu, que existe, que respira, sonha e tem medos) e a favor da VIDA DOS HUMANOS NASCIDOS, ou seja dos filhos que se tenham tido. Eu não sou pró-vida quando se trata de vidas em potencial, porque afinal de contas nem vida ainda são.
Quando eu falo de aborto, eu estou falando de autonomia corporal. Mesmo quando esta autonomia corporal é discutida dentro de um sistema tão cruel que nossas necessidades financeiras, que a supremacia branca e que o cispatrarcado façam com que esta autonomia corporal esteja condicionada às brutais condições materiais da vida. Mas, que nossos corpos sejam o mais livres possível, mesmo dentro de um mundo não-livre.
A minha autonomia corporal é a condição sem a qual eu não posso lutar por todas as demais liberdades. Eu preciso de corpos livres, inclusive de úteros livres, para que o mundo inteiro possa ser livre!
*O lugar da fala acolhe a expressão de cada uma. As autoras do blog não interferem nas escolhas das colaboradoras quanto ao uso da linguagem, ao estilo de escrita, à gramática e à sintaxe. A revisão feita é meramente técnica, para correção de eventuais erros de digitação, todo o resto será tratado como opção de estilo da autora.
Formada em Direito pela UFMG, especialista em Gênero e Sexualidade pela UERJ e mestre em planejamento urbano também pela UFMG. É feminista e ativista por direito à moradia adequada há mais de dez anos. Adora séries, filmes, gatos e cerveja.