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O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade?

Publicado por:
Paula Bernardelli
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Esse texto é pra falar da relação das mulheres com o feminismo. Mas eu e você sabemos que eu não tenho a menor ideia de como é a sua relação com o feminismo, então eu só posso estar falando de mim mesma.

 

O feminismo é uma arma poderosa que ainda não sabemos usar. Algumas mulheres incríveis criaram tudo isso, toda essa problematização, toda essa desconstrução, toda essa vibe de luta diária, e aí entregaram na nossa mão, sem explicar como se usa, como engatilha, como dispara. Só nos disseram pra não soltar, em hipótese alguma, porque vai ter sempre alguém por perto querendo destruir esse aparato todo.

 

Também não nos disseram exatamente qual é a guerra. O patriarcado, a sociedade, o machismo estrutural, as amarras que nos prendem, não é contra os homens, mas é contra alguns homens, ou contra nenhum homem, talvez contra algumas mulheres, mas nunca contra as mulheres de fato, enfim, sabe-se lá, mas é contra algo que está sempre aí, que nunca descansa, que nunca acabará sozinho, e é preciso ficar alerta.

 

E a verdade é que ficar alerta e segurando essa arma que não vem com instruções cansa demais, cansa todo dia, cansa o tempo todo. Dá uma dor e uma solidão, um sentimento de “por que essas pessoas aqui em volta não estão me ajudando a segurar essa barra que é gostar de viver?”.

 

O feminismo nos liberta de muita coisa todos os dias, nos convence diariamente – e precisamos ser gratas por isso – que podemos ser o que quisermos, quando quisermos, a hora que quisermos.

 

Mas a verdade é que ainda tá faltando combinar com os russos, e se tem uma gente difícil de ser convencida é essa aí. E é essa luta diária de combinar que “veja bem, podemos ser livres” que às vezes nos aprisiona tanto,  ou nos deixa numas dúvidas danadas de quando a luta vale a pena ser lutada.

 

Porque por mais que a “causa” em grande escala seja efetivamente libertadora e necessária, na luta diária ela pode ser ingrata e bastante solitária. E aí acontece que tem dia que a gente não tá a fim.

 

Que é  melhor aguentar aquele amigo fazendo piada machista do que ter que servir torta de climão no rolê da galera de sempre. Ou mesmo aguentar umas ideias pouco libertadoras da galera de sempre só pra não perder o grupo do rolê, porque só deus sabe o custo que é formar uma nova galera do rolê depois de uma certa idade.

 

E aí não falar nada em situações que a gente sabe que devia falar alguma coisa vem com uma cobrança desse armamento todo de “vai ficar quieta agora, é? Tanta problematização nas redes sociais pra agora não falar nada pro amiguinho, é isso?”.

 

E a verdade também é que poder falar alguma coisa é um privilégio que poucas mulheres têm. Poder contestar o ambiente em que vivem, poder expressar opinião no ambiente de trabalho, poder falar quando aquele cliente bizarro tá soando meio assediador, até poder não rir das piadinhas machistas e imbecis de todos os dias é um privilégio enorme. E o que a gente faz com esse privilégio? Às vezes nada. Nadinha. Às vezes pensamos mais na paz das nossas relações pessoais do que na desconstrução de uma ordem social centenária. E isso faz bater uma culpa enorme depois.

 

Especialmente, porque, pode ter certeza, vai ter um monte de homens (e, infelizmente, de mulheres) apontando essa sua “falha de conduta” e tentando cassar sua carteirinha feminista o tempo todo.

 

Com isso a gente vai olhando em volta e notando muita amiga meio desanimada, porque se de cobrança a universidade e o trabalho estão cheios, ninguém vai ficar num movimento acolhedor que nos enche de mais um tanto delas, convenhamos.

 

Mais do que os momentos em que podemos fazer algo e escolhemos não fazer por motivos de “todo mundo merece um pouco de paz na vida e eu quero a minha agora”, tem aqueles momentos em que queremos fazer algo e não temos a menor ideia de como agir.

 

Quem nunca passou por aquela situação de ver um relacionamento abusivo bem ali na nossa frente e ficar pensando “como eu faço pra avisar que essa coisa aí tá meio errada sem parecer uma grande intrometida na vida alheia?”, ou de ver uma agressão física bem ali, do nosso lado, e pensar “e se eu interferir sozinha e esse maluco tá armado?”, ou nós, feministas brancas, sentarmos numa mesa repleta de outras mulheres brancas e pensarmos “eu me recuso a estar aqui e abro mão de um espaço que as mulheres lutam tanto para conquistar? Eu aponto o excesso de branquitude dessa mesa correndo o risco de tomar o lugar de fala?”

 

Tem também aquele espaço que a gente conquista porque caiu nas graças de um machista qualquer, que é um imbecil com outras mulheres mas nos trata bem, e rola aquele medo de apontar qualquer coisa nele e também “confirmar” a opinião que ele tem sobre trabalhar com mulheres ou qualquer coisa assim, (e de perder esse espaço que lutamos para conquistar – tem um egoísmo na ausência de ação que a gente não pode esconder também, todas temos, o tempo todo).

 

O feminismo faz dessas, nos coloca alertas, nos dá as armas, nos mantém atentas, mas – talvez com certa frequência – nos paralisa, não nos diz como usar tudo isso, não nos explica pra que que serve, e “nos cobra” uma ação que vez ou outra não temos condições físicas e psicológicas de tomar.

 

Mas quem é a malandra que nos cobra tudo isso?

 

A gente bem sabe que de homem bem-intencionado perguntando “cadê as feminista?” o inferno tá cheio.

 

Mas de feminista bem-intencionada perguntando “cadê seu feminismo?” ainda tem vaga sobrando, e esperamos que permaneçam vazias. Porque a gente vem observando que o “e isso é postura de feminista?” is the new “mulher tem que se dar ao respeito!”, mas nesse caso ainda dá pra combinar com as russas e sair todo mundo ganhando.

 

A gente tá que não aguenta mais problematização de Vai Malandra, a Roberta Gresta escreveu lindamente aqui sobre como isso, inclusive, nem nos cabe, e que a gente precisa parar de tentar salvar as mulheres periféricas de uma realidade que elas não querem ser salvas – e que, convenhamos, será mesmo caso de salvamento?

 

Fizemos do clipe da Anitta uma problematização infinita, o que não teria problema de imediato – problematizar a indústria musical, especialmente a indústria pop que atinge um sem número de pessoas é super aceitável, necessário, tamo junta -, mas quando trem descarrilhou pra uma problematização da Anitta e das mulheres que aparecem no clipe, aí é aquela hora que a gente para com as mãozinhas na cintura e pergunta “cês tão é de brincadeira comigo, né?”

 

Porque tem gente que acha que estamos todas no mesmo momento da vida e que o feminismo é uma competição de quem é mais desconstruidona. Ignorando a realidade na qual cada uma das mulheres vive, e ignorando que o que pode ser um passo muito simples pra nós, pode ser uma grande luta para uma outra mulher.

 

E vocês pensaram que eu não ia rebolar minha bunda hoje?

 

O clipe da Anitta dá uma incomodada na minha moral branca e pudica de classe média, não vou fingir que não, não vou mentir que tenho uma libertação sexual e um desprendimento do meu corpo que não tenho. A real é que eu ainda gasto boa parte da minha energia para agradar os homens, e ver uma mulher rebolando sensualmente numa mesa de sinuca, rindo enquanto brinca deliberadamente com sua bunda e ocupando uma posição no cenário da música mundial que nenhuma brasileira jamais esteve antes, bom, isso dá um certo incomodo num primeiro contato.

 

Porque nós fomos criadas pra ser castas. Porque fomos ensinadas a vida toda que isso era nos valorizar, nos respeitar.  Mas nos questionamos muito pouco quem media esse valor.

 

 

Hoje a gente sabe, hoje a gente reclama, hoje a gente briga pra que a forma como desfrutamos do nosso corpo não determine nosso valor, hoje a gente grita pros homens que eles não tem o poder de nos valorizar ou desvalorizar de acordo com os critérios que bem entendem.

 

E aí vem uma mulher que, ao seu modo, grita isso pra um público bem maior do que o que nós um dia seremos capazes de atingir, e o que a gente faz? Problematiza a mulher. Isso. A mulher virou nossa luta.

 

Será a mulher feminista o suficiente para considerarmos seu clipe feminista o suficiente? Será a intenção da mulher fazer um clipe feminista ou a mulher só quer vender seu trabalho e conquistar coisas em sua vida pessoal?

 

Estará essa mulher vendendo uma imagem de um Brasil hipersexualizado para os estrangeiros? Isso, os estrangeiros. Agora a gente se preocupa com a imagem que os estrangeiros tem das mulheres aqui, se nos acham dignas de respeito, os homens a gente odeia que nos julguem assim, vamos sair sem sutiã por aí, sair sem blusa na marcha das vadias, quem esses homens pensam que são pra decidir se somos valorizáveis ou não? Mas os estrangeiros, bom, vamos tomar um certo cuidado com a imagem que as mulheres brasileiras constroem com os estrangeiros né gente?!

 

E não podemos deixar de observar: só uma gente muito ensinada pra ser casta pra achar que uma mulher adulta rebolar é hipersexualização. Não podemos deixar de observar também: só uma gente muito educada pela Globo pra achar que um clipe no Vidigal mostra a imagem “do Brasil”, o clipe não me parece ter essa pretensão, e Anitta sempre discursou sobre a valorização do funk carioca – coisa que conseguiu como ninguém – e não sobre vender uma imagem de o que é o Brasil. (Aliás, ninguém falou nada sobre a imagem do Brasil que Anitta passou em seu clipe no meio das vitórias-régias numa Amazônia que a maioria de nós nem conhece, ali não era Brasil?)

 

E menciono Anitta por ser o caso mais recente, mas transformar mulheres em objetos de luta e palco de guerra do feminismo não é de hoje. Tivemos isso com Mallu Magalhães e seu relacionamento taxado de abusivo por tantas mulheres que fizeram tudo, menos ouvir Mallu. (Importante fazer a ressalva: sabemos dos casos de racismo em que Mallu Magalhães esteve envolvida, não é disso que se trata, a problematização da indústria cultural, mais uma vez, é necessária).  Tivemos isso também com Sandy e sua pretensa “falsa pureza”, como podia ela ser tão mais pura que nós? Só podia ser mentira. Se fazia de pura ali, pra agradar os homens, pra parecer santinha, só podia ser.

 

Sandy era criticada por vender um modelo de docilidade do qual queríamos nos distanciar (queríamos será? Todas nós?), Anitta criticada por se apropriar de seu corpo e sua sensualidade de forma excessiva. Percebe, Ivair?

 

Inclusive, Sandy e Anitta vão muito bem, e vão juntas quando decidem ir juntas.

 

 

Assim como Pitty e Anitta, porque também tentaram construir que Pitty era a mulher de verdade que entende o feminismo, que lutou num ambiente predominantemente masculino, ela que entende das problematizações todas, ela que “corrigiu” Anitta num programa da “vida inteligente na madrugada”, ela que ensinou o feminismo pra Anitta, essa mulher “desinformada” (que também luta num ambiente predominantemente masculino e, embora administre de forma invejável sua própria carreira precisa lidar com preconceitos diários só porque rebola num palco e ainda tem gente achando que mulher que rebola não pensa – mas isso a gente anda ignorando por algum motivo).

 

E aí, no meio desse campo de batalha que não sabemos bem qual é, manejando esse armamento que não sabemos bem como funciona e lutando uma luta que quase sempre é muito ingrata, a gente vai criando umas guerras que não existem e que nos cansam tanto. Vai construindo uns argumentos tão completos e tão incríveis pra esconder nossas próprias falhas, como se fiscalizar o feminismo alheio nos fizesse mais feministas, mais desconstruídas, mais especiais.

 

Pois, eu não sei ainda o que fazer com essa liberdade toda que o feminismo me mostra que tenho, mas salvar mulheres de uma vida que elas querem ter não tá nos meus planos.

 

Então vai, malandra, brinque com esse bumbum, ou não brinque, ou esconde ele, ou saia mostrando, ou não faz nada, bloqueie quem gosta de música pop farofa, cantarole enquanto limpa a casa, ou nem limpe sua casa, combata o machismo diário no Facebook, ou na roda de amigos, abandone o rolê enquanto o rolê não for feminista, mas volte pra ele se sentir sozinha demais (tem dias que são piores que os outros, a gente bem sabe), fique feliz, case, tenha filhos, ou não tenha, nem case, more com mais de um, com mais de uma, more cada ano com um diferente, ou more sozinha pra sempre, se liberte do que ainda te prende se o que te prende te faz infeliz, ou se agarre nisso pra ficar mais segura,  se for teu caso, enfim, faça o que quiser, só não esqueça que “o corpo [e a vida] de outra mulher não é nosso campo de batalha”.

 

Rupi Kaur – Outros Jeitos de Usar a Boca

Sobre a autora

Feminista por necessidade, desde criança encontrou na verbalização uma arma de resistência, escreve porque acredita nas palavras como fonte inesgotável de magia, na importância do debate e na força da pluralidade de vozes.

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