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A partir de agora, sobreviver não será a única opção.

Publicado por:
Danieli Christovão Balbi
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Em uma sexta-feira saí com algumas das mais queridas amigas; “ocasionalmente”, todas mulheres; coincidentemente, todas cisgêneros. O dia começou com uma moleza afetiva, um torpor de “crush”, em que foi preciso recorrer à sapiência de uma irmã que está a léguas de distância, porque naquele momento só ela poderia me tranquilizar e me encher da serenidade necessária para conduzir a noite. Foi tudo bem, como tem sido na maioria das vezes: rimos muito, trocamos juras de amor depois de algumas doses, encontramos pessoas queridas, flertamos, esticamos, fomos surpreendidas e voltamos para casa. Uma dessas queridas, aliás, é uma amiga maravilhosa: inteligente, divertida, estonteante, psicóloga; não por acaso, uma mulher transexual.

 

Justamente porque as coisas têm sido melhores, eu pude escrever este texto.

 

Não há um dia em que a minha situação de transexual não compareça no meu cotidiano, mesmo quando eu estou sozinha, quando eu sequer saio de casa. Já foi tudo: angústia, tomento, vergonha, medo; se tornou apego, orgulho e até saudades que parecem inexplicáveis (saudade do pré e do pós-operatório, da vaquinha, das primeiras reações e sensações etc.). Eu me peguei, inclusive, resistindo à normalização: me envergonhei de estar exausta na fila da farmácia porque, afinal, eu deveria estar feliz por levar produtos de higiene íntima. Eu me repreendi, pois estava banalizando a minha trajetória.

 

A verdade é que o policiamento está aqui como forma de reação a uma sociedade que continua sendo estruturalmente transfóbica e machista. O medo e a vergonha constrangem a todo tipo de procedimento que nos leve a uma situação frágil de “passabilidade” em universos (poucos, diga-se não de passagem) que insistem em barganhar a cidadania de pessoas trans a partir do enquadramento higienista. Tormento por saber que, apesar de todos os esforços possíveis (políticos e pessoais), ainda seremos conduzidas para a prostituição compulsória, para a exploração de nossa “excentricidade”, de uso e descarte de nossos corpos e desconsideração do que pensamos, formulamos ou sentimos. Angústia diante da incerteza sobre ser reconhecida no gênero pelo qual você existe socialmente, de forma concreta, já que não há garantia legal de retificação da situação civil (alteração da situação de sexo e do nome nos registros públicos definitivos, como identidade e certidão de nascimento), nem mesmo depois de todo tratamento ainda patologizante a que transexuais são submetidos. O projeto de Lei 5002 de 2013, de autoria do deputado Jean Wyllys, que procura garantir a autodeterminação de gênero para todos os cidadãos, está “empacado” no congresso mais conservador, em perspectiva histórica, da nossa República.

 

Tratamento esse, aliás, que, apesar das limitadas garantias asseguradas pela portaria que regulamenta o processo transexualizador no Brasil (Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013), não são nem de longe cumpridas em sua integralidade pelo SUS.

 

A nossa expectativa de vida ainda não passa de 35 anos, e minha mãe me perguntou o porquê. Expliquei a ela que nos perdemos assassinadas Brasil a dentro, seja pela transfobia manifesta em ódio destilado pela reação conservadora, alimentada pelas barreiras entre nós e a educação formal; pela restrição ao acesso aos mais variados postos de trabalho, em decorrência disso (mas não só por falta de escolarização, ainda assim); pela depreciação de nossa imagem, que se dá por meio do reforço da caricatura ou, quando muito (muito pouco que na realidade é menos que nada), pela hipersexualização das nossas vidas, em todos os movimentos, desde comprar pão até passar um batom, calçar um sapato, sorrir baixinho.

 

A minha mãe tem pavor de que eu faça mais uma cirurgia e, no entanto, ela tem ainda mais medo que eu seja morta reconhecida como transexual, risco que corro todos os dias, do qual só escapo quando fecho a porta do meu quarto à chave (hábito significativo que adotei após a transição e que não consegui abandonar). Minha mãe tem sonhos, orgulhos e medos que nós não deveríamos admitir: ela sonha que eu encontre um companheiro, mas teme que, sendo eu uma mulher transexual heterossexual, me relacione com um companheiro que seja incapaz de ser empático, que me violente; ela morre de medo de algum homem se interessar por mim e, diante da fragilidade da masculinidade, se vingue de mim pelo descarte da minha vida, o que a reificação das pessoas trans estimula e sanciona. Ela insiste para que eu continue o doutorado e que invista na carreira pública, que ainda é o único lugar em que eu tenho chance de ganhar as batalhas por sobrevivência e dignidade que certamente enfrentarei. Ela sabe que eu só terei meus gritos tolerados como ruídos dessa forma. Minha mãe tem orgulho da trajetória de construção da mulher que sou e, entretanto, sua insistência para que eu reafirme menos minha situação de transexual está ligada à constatação de que minha vida, minha cidadania, minhas alegrias cotidianas e projetos de felicidade terão alguma chance se eu tentar negligenciar as minhas marcas.

 

Foi assim que eu passei a reafirmar meu orgulho de ser transexual como arma, como estratégia de provocação diante de contextos em que eu não seria admitida, onde o status quo preferiria que isso não fosse “observado”.

 

Eu comecei a sentir rancor, a narrar cada indignação diária nas redes sociais, a expor cada relação tóxica marcada quase sempre pela assimetria de gênero e também pela disforia de gênero. Eu, que era leve e espontânea, me tornei amarga e reativa, sabendo que eu não tinha mesmo outra escolha. Era preciso que as pessoas parassem, que elas enxergassem que estar ali exigia tanto, tanto, que não estar em outros lugares foi uma conquista às custas de tantas outras marcas e que há espaços tão banais que provavelmente nunca serão meus.

 

Passei a me fechar em um universo autorreferente: comemorar coisas que tinham sentido para mim, me isolar, fazer do meu corpo minha morada. Passei um tempo longe de conexões mais profundas, me perdi em mim mesma. Perdi muitas vezes o controle das minhas reações. Perdi também o controle do meu corpo. Voltei para terapia.

 

Todavia, nos piores momentos, olhar ao redor me salvou. Eu não estou sozinha, e isso vale muito. Aqui, hoje e em diante, importa perceber que há muitas professoras, muitas mulheres negras, muitas militantes; há atrizes e modelos; há cantoras, escritoras, empreendedoras. Eu as vejo por toda parte, eu as acompanho, as sigo. Eu estou com todas elas. Eu sou fruto de todas elas: de suas lutas públicas e particulares. Em geral, estamos em muitas frontes ombro a ombro, lutando juntas, acompanhadas, ainda que não em praesentia.

 

Comecei a perceber que dentre todas essas companheiras, muitas são transexuais, observando que, mesmo diante de todo ódio, nós resistimos, avançamos, apoiadas em suporte, em luta, em risos, umas nas outras. Eu sou minhas amigas e também sou Zezé Mota, Roberta Close, Monalysa Alcântara, Ariadna Arantes, Rachel de Queiroz, Taís Araújo, Jacqueline Gomes de Jesus, Maria Clara Spinelli, Anitta, Pabllo Vittar

 

Por isso que, nesta sexta-feira, quando eu cheguei em casa e deitei na cama, pensar sobre ser transexual foi me certificar de que, se nós estamos aqui, apesar de tudo, foi a luta, a coragem, a necessidade e a obstinação que nos trouxe. Isso nos entrega suporte e projeta referências, ao que somos capazes de enxergar que há caminho, mesmo diante de todo resto ser adverso. Há vitórias nas batalhas que travamos. Em que pesem os enfrentamentos que se impõem, há o que comemorar nesse dia 29. Então, porque assumimos na unha que sobreviver não será a única opção, nossa maior responsabilidade é viver.

Sobre a autora

28, Doutoranda em Literatura Comparada pela UFRJ.Professora de Literatura da Seeduc-RJ. Diretora de políticas de promoção de equidades na UNA-LGBT, militante comunista e contra a opressão aos transexuais e travestis.

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