Qual equação salvaria a vida de Miguel?
Faz alguns dias, falei do equívoco de desconsiderar análises sociais e a voz da periferia ao se estabelecer planos de retomada de atividades na pandemia.
Cheios de números, homens brancos da elite calculam a ocupação de leitos, medem a taxa de contágio, projetam curvas e mandam que usemos máscaras, luvas, sabão, alcool gel. Dividem mecanicamente atividades já seguras e outras que precisam aguardar. Nesse desenho, escola e creche ficam do lado de academias, “um-hum, muito arriscado, não abrem esse ano não”.
Na conta, não entra o Miguel. Nenhum plano contempla o malabarismo de Mirtes pra ir trabalhar como doméstica, tendo um filho de 5 anos. Nos riscos, não entra o racismo de Sari Corte Real, a madame que manda uma mãe passear com cachorros, cujo bem estar lhe preocupa, enquanto não consegue ter empatia com a angústia de uma criança pequena.
Para Sari, Miguel era um estorvo. Um fator irritante na sua egoísta equação em que só cabiam a manicure e a doméstica, não vistas em sua humanidade, mas em sua utilidade produtiva.
O problema é que Sari não pensa assim tão diferente dos bons médicos empenhados em estabelecer atividades que podem ser retomadas.
Eles também não enxergam as mães pretas da periferia, seus filhos, seus lares, sua preocupação em manter vivos aqueles que amam, seu desespero em não ter meios adequados para isso.
Eles também medem essas mães como engrenagens da economia, dizendo que já podem voltar a girar, como se fossem, sem o trabalho externo, peças ociosas.
Eles também parecem acreditar em uma caixa milagrosa, onde crianças incômodas e improdutivas poderão ser colocadas e então, apertando-se um simples botão, sumirão magicamente, deixando apenas a ordem, o silêncio, a produtividade.
Vejam que pouco importa, aqui, distinguir boas intenções da motivação fria que leva alguém a enfiar um menino de 5 anos em um elevador. Fato é que se está discutindo a retomada de atividades, por preocupação econômica, sob uma camada de invisibilização milenar do sacrifício daquelas que se dedicam às tarefas domésticas e aos cuidados com a família (sua e dos outros).
Em cenário de drástica desigualdade social marcada pelo racismo, esse sacrifício é majoritariamente imposto a mulheres negras e pobres. Qualquer plano de flexibilização do isolamento social que não principie por dizer onde essas mulheres poderão deixar seus filhos, em segurança, para ir trabalhar, é simplesmente torpe.
Falo inclusive de planos que atendam demandas de mulheres em melhor condição econômica sem se importar com o desencadeamento disso para mulheres mais vulneráveis. O feminismo liberal, que emancipa mulheres ao custo da exploração de outras, não oferece qualquer saída digna para o problema.
Não se enganem. Tem a crueldade de uma Sari dentro de cada um que diga a uma mãe pobre “já pode voltar a trabalhar” com um oculto “se vira, querida” em relação a seus filhos, jamais contemplados nas equações que prometem salvar vidas em meio à pandemia.
Cresceu ouvindo que era uma menina "cheia de opinião", teimosa, atrevida e inconformada. Um dia, entendeu que esses eram seus melhores atributos pra ser uma mulher capaz de fincar pé nesse mundo de homens. Por isso, escreve.