Segunda pele
Existe alguém em nós
Em muito dentre nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você de mim
Talvez a coisa mais difícil seja falar de si com sinceridade, pois corremos o risco de perder o fio do decoro pela autopromoção, e, com a desculpa de deixar de lado a falsa modéstia, nos entregamos à vaidade; ou, ao contrário, nos apequenarmos quando urge se engrandecer.
Eu não sei onde começa a minha vida, muito bem, mas sei que ela tem uma marca: a da eterna diferença.
Filha de mãe solo, negra, do subúrbio carioca, rotulada como “diferente”, na cor da pele, na vida dura, na identidade… Aos doze anos me percebi mulher transexual; eu guardei tanto, tanto, tanto… Tive a certeza de que o mundo me reservaria dores, mas acreditei nas boas surpresas.
Elas vieram, claro, porém não fruto do acaso, e sim de um esforço estoico: me graduei em Literaturas na faculdade de Letras da UFRJ, onde, sabe a Deusa como, ingressei aos 17 anos. Tive a sorte de me encantar pelo curso, seguir no mestrado e no doutorado.
Nesse tempo, pude dizer que fui talhada a fogo: me despi de fantasias, me confrontei com todos os meus limites e reafirmei compromissos comigo mesma. Enfrentei a transição de gênero aos 23 anos, de forma mais efetiva, quando vieram abalos sísmicos, poderia dizer: família, carreira, as intermitências da autodeterminação, a necessidade de coragem justamente no período de maior fragilidade.
Entretanto, se há algo que eu aprendi cercada por mulheres pretas, foi a fazer da pele casca de crocodilo e do peito armadura de aço, abrigo somente para mim mesma.
Segui… Recuperando aos poucos lugares, certezas e relações, eu segui comigo, para mim, certa de que não cabia retroceder, ciente de que não havia mais lugar lá atrás. Aos 26, recomposta, com as feridas cicatrizadas, agarrada a tudo que eu tinha de sólido, sobrou uma certeza: eu tinha de começar a terminar e, graças aos meus amigos, que ajudaram a trilhar o caminho, eu fui obstinada.
Era imperioso quebrar de uma vez aquele espelho. No dia 20 de julho de 2016 – não por coincidência dia do amigo –, lembro-me de ter aberto os olhos e perguntado à minha prima – que por providência da Deusa estava escalada naquele dia – se já havia acabado, se tudo correra bem. Ela sorriu e acenou positivamente com a cabeça. Olhei para ela e para o meu cirurgião e disse: “tudo que eu quero agora é mingau de chocolate”.
Não há dores sem cicatrizes, mas também não há trabalho sem feridas, e não há, no caso de pessoas que nasceram com as marcas que eu nasci, como se despir delas, superar as limitações que elas configuram, sem adquirir outras. Essas outras são nossas, são aquelas para as quais a gente olha e diz: a história da minha sobrevivência foi escrita aqui, nas marcas de toda natureza que meu corpo e minha memória a afetiva vão carregar.
Hoje, aos 28 anos, mulher, negra, transexual, professora, pobre e periférica, dia 20 de julho, exatamente um ano depois de tudo, tendo tido um dia cheio – aulas dadas, compras, boletos – eu conquistei sentar e estar comigo mesma, sem nada entre mim e eu, como só há um ano eu posso.
Celebro a mulher que eu, a duras penas, mantenho de pé.
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* Segunda Pele foi originalmente publicado aqui.
** O lugar da fala acolhe a expressão de cada uma. As autoras do blog não interferem nas escolhas das colaboradoras quanto ao uso da linguagem, ao estilo de escrita, à gramática e à sintaxe. A revisão feita é meramente técnica, para correção de eventuais erros de digitação, todo o resto será tratado como opção de estilo da autora.
28, Doutoranda em Literatura Comparada pela UFRJ.Professora de Literatura da Seeduc-RJ. Diretora de políticas de promoção de equidades na UNA-LGBT, militante comunista e contra a opressão aos transexuais e travestis.