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Um curto manifesto pelo amor camarada

Publicado por:
Cintia Melo
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Um grito pelo amor-camarada, é ao mesmo tempo, um clamor contra a submissão do ideal de amor romântico e também contra isso a que se vive como uma experiência neoliberal de relacionamentos abertos.

O amor camarada, assim chamado pela Alexandra Kollontai, de onde me inspiro livremente, consiste na escolha de relacionamentos que se insurjam contra a dominação, inclusive a dominação de classe. O casamento (e hoje as uniões estáveis) é uma forma de controle por parte da Igreja e do Estado e também de controle econômico.

Por meio do casamento as mulheres se submetem a jornadas duplas ou triplas gerando renda não remunerada ao casal, em nome do que se convencionou chamar de família.

Devido ao controle religioso, o casamento liberta a mulher da exigência da castidade (uma vez que aos homens sempre foi permitido os prazeres da carne, desde que eles pudessem comprá-los, seja pela prostituição ou pelo sustento de múltiplas amantes).

E o Estado consegue por meio da pactuação contratual garantir a perpetuação do modelo de exploração vigente, consagrando apenas ao âmbito privado o dever, que deveria ser coletivizado, de criação dos filhos.

De forma a tornar a instituição do casamento mais palatável, a burguesia o revestiu do ideal do amor romântico, fazendo crer que as partes se submetiam à monogamia e partilhamento de bens em razão de sentimentos profundos da alma. O amor romântico idealiza relações que são, pela natureza do convívio, permeadas de dificuldades. Também, naturaliza a monogamia feminina (repetindo, que a traição masculina sempre foi tolerada em nossa sociedade) fazendo crer que sexo e bem querer se assemelham.

O amor romântico incute nas mulheres a crença de serem salvas e libertas pelo homem amado. Aos homens faz crer que encontrarão quem lhes sirva obedientemente. Construiu socialmente a ideia de que o ciúme é uma forma de amor para que justificassem a possessão dos corpos, das almas e das ambições a quem se diz amar.

Mais recentemente, em resposta a conquistas sociais feministas, LGBTQ+, dentre outras, que questionam os controles dos corpos, o neoliberalismo respondeu com o advento dos relacionamentos abertos, onde, em linhas gerais, as partes podem livremente se relacionarem sexualmente com outros parceiros. No entanto, os relacionamentos abertos em nada se parecem com a liberdade. Trata-se tão somente de uma hipersexualização dos corpos femininos e consequente desumanização das parceiras, isentando os homens, portanto, de qualquer responsabilidade afetiva.

Face a tudo isso, proponho que troquemos o amor romântico burguês e os relacionamentos abertos neoliberais, pelo amor-camarada. Trata-se de forjar relacionamentos fundados no ideal máximo da liberdade de todos os seres. Liberdade econômica, social e política.

O amor-camarada é o exponencial da amizade, companheirismo, confiança e anseio revolucionário.

No amor-camarada almeja-se alcançar a potencialidade máxima dos corpos, que expressarão livremente suas sexualidades, com um ou mais parceiros, conforme se convencione.

O amor-camarada não precisa de diamantes, quartos conjugais, ou véu e grinalda para se provar. Ele se prova na escuta ativa, no acolhimento dos receios e principalmente na luta permanente pela conquista de direitos e emancipação.

O amor-camarada entende a constituição da família, não por meio de laços de submissão, mas tão somente pela troca de afetos e compartilhamento mútuo de responsabilidades e direitos. Entende também, a criação dos filhos não como exercício opressor da maternidade, mas um viver igual entre pai(s) e mãe(s) e coletividade, que se responsabiliza por meio da universalização do ensino infantil e cooperação local.

O amor-camarada não se sustenta pela cor da pele, pelo contracheque, pela nacionalidade, pela religião ou por sexo. O amor-camarada experiência a afetividade humana na sua plenitude, e escolhe seus parceiros pelos encontros elevados do espírito.

O amor-camarada não tolera opressões, por isso, exige dos homens constante aprendizado e auto-crítica, já que foram ensinados ao longo de séculos a abusarem fisicamente, psiquicamente, socialmente e economicamente de suas mulheres.

O amor-camarada só sobrevive quando se quer ao outro a mesma liberdade que se quer a si mesmo. Não faz exigências, não tolera negligências.

O amor-camarada, como o proponho, almejo, grandiosamente, ser o futuro revolucionário das relações humanas. Para que só então, na radicalidade do amor e da liberdade, possamos ter em cada coração uma célula revolucionária.

Sobre a autora

Formada em Direito pela UFMG, especialista em Gênero e Sexualidade pela UERJ e mestre em planejamento urbano também pela UFMG. É feminista e ativista por direito à moradia adequada há mais de dez anos. Adora séries, filmes, gatos e cerveja.

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